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Dislexia, TDAH e outros diagnósticos de transtornos de aprendizagem? Cuidado!

Atualizado: 23 de ago. de 2021

Na tentativa de encontrar uma resolução para o que pode-se ver como problemas de aprendizagem, podemos erroneamente diagnosticar e rotular as crianças

Trocar letras e números, não ler corretamente, omitir letras na escrita. Quando uma criança apresenta atitudes como essas é comum os próprios pais, cuidadores e mesmo professores rapidamente fazerem o “diagnóstico”: ela deve ter dislexia. O mesmo acontece com o “diagnóstico” de TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade) para aqueles pequenos que não conseguem se concentrar por muito tempo em alguma coisa, não ouvem direito, não seguem instruções à risca. E estou usando a palavra “diagnóstico” assim, entre aspas, porque a verdade é que simplesmente não é possível se fazer um diagnóstico de dislexia, TDAH, discalculia ou qualquer outra denominação que envolva questões da aprendizagem sem as ferramentas próprias para isso, que, ainda assim, só devem ser aplicadas por um profissional preparado para tal. Portanto, a ideia com este texto é, sim, passar um pouco dos conceitos desses transtornos, mas principalmente alertar os pais e responsáveis do que não são e de como um “diagnóstico” precoce e, muitas vezes, errôneo, pode comprometer ainda mais a aprendizagem das crianças.


“Deve ser dislexia”


Mais conhecida e com frequência erroneamente diagnosticada, a dislexia é conceituada como “um transtorno específico de aprendizagem de origem neurobiológica, caracterizada por dificuldade no reconhecimento preciso e/ou fluente da palavra, na habilidade de decodificação e em soletração” (definição da pela IDA – International Dyslexia Association). Entre seus considerados sintomas estão dificuldade na aquisição e automação da leitura e da escrita; dificuldade em copiar de livros e da lousa; dificuldade na coordenação motora fina (letras, desenhos, pinturas etc.) e/ou grossa (ginástica, dança etc.); confusão para nomear entre esquerda e direita; e dificuldade em manusear mapas, dicionários, listas telefônicas etc., entre outros.


Na prática, o que acontece é que crianças que resistem à escrita são classificadas como disléxicas ou, na melhor das hipóteses, quando a escrita de uma criança vai mal suspeita-se que é porque deve ser disléxica. Trata-se de um diagnóstico em que a dislexia é a causa, ou seja, é por causa da condição disléxica que a criança escreve/lê mal. O que acontece na escrita, então, é tomado como um sintoma, como um sinal, um traço que mostra a condição presente do estatuto de disléxico para aquele que escreve. O grande problema desse “problema de escrita” é que, se é mesmo um transtorno de origem neurobiológica, sua existência só poderia ser confirmada por especialistas da área médica, mas frequentemente o “diagnóstico” é feito por professores e responsáveis.


“Tem cara de TDAH”


Mais comum ainda é escutar pais e educadores afirmando que determinadas crianças têm ou devem ter o temido Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade. Entidade clínica que tem recebido um espaço muito grande na mídia, em cursos para educadores e publicações mais informais, o TDAH é, segundo conceito, “um transtorno neurobiológico, de causas genéticas, que aparece na infância e frequentemente acompanha o indivíduo por toda a sua vida caracterizando-se por sintomas de desatenção, inquietude e impulsividade”. Russell Barkley, autor da “história oficial” do TDAH, concluiu durante a década de 1990 que esse transtorno era o resultado de um defeito da inibição e da capacidade de autocontrole, resultado do processamento anormal de informações em algumas áreas cerebrais responsáveis pela emoção e pelo controle dos impulsos e dos movimentos. Em suma, para o pensamento científico predominante, o que determina o TDAH é o defeito inibitório cerebral que impede o indivíduo de focalizar a atenção e sustentá-la para atingir uma recompensa ao longo prazo.


Dividida em três tipos, têm entre seus sintomas falta de atenção a detalhes ou cometer erros por descuido em atividades escolares, de trabalho etc.; dificuldades para manter a atenção em tarefas ou atividades lúdicas; não obedecer instruções e não completar deveres, ou tarefas no trabalho; frequentemente perder objetos necessários para suas atividades (brinquedos, deveres escolares, lápis, livro, etc.); frequentemente agitar as mãos ou os pés ou se remexer na cadeira; dificuldade para brincar ou se envolver silenciosamente em atividades de lazer; falar em demasia; interromper ou se meter em assuntos de outros. Mesmo tendo alguns critérios para que o diagnóstico seja feito (como os sintomas manifestarem-se em mais de um ambiente, estarem presentes há mais de seis meses e em um grau incompatível com o nível de desenvolvimento, comprometendo a adaptação), ainda assim, podemos ter a impressão de que essa descrição sintomatológica está carregada de juízo de valor, sentido moral e muito vinculada às tarefas. Sem contar que, só de ler, é fácil perceber que qualquer criança e até adultos se sentiriam incluídos nos critérios diagnósticos estabelecidos.


Uma aprendizagem “doente”


Assim, podemos dizer que tanto a dislexia quanto o TDAH e outros considerados transtornos de aprendizagem ultrapassaram as barreiras do discurso médico e passaram a oferecer-se como parâmetro para a avaliação do professor ou pai a respeito da produção de seu aluno ou filho. Maria Aparecida Moysés, médica que se dedica à temática dos distúrbios de aprendizagem, trabalha com a hipótese de que a medicina formula a sua conceituação da dislexia (e a consequente indicação terapêutica) no interior de um processo nomeado medicalização da vida. O termo foi utilizado no século passado pelo filósofo francês Michel Foucault, para enfatizar a influência da medicina em quase todos os aspectos da vida, controlando a cotidianidade das pessoas por via de seus estatutos científicos sobre doença e saúde, normalidade e patologia.


Medicalizar a aprendizagem, portanto, é converter em objeto da medicina e do médico não só corpo, mas as condutas humanas apresentadas durante o (complexo) processo do aprender, normatizando e separando o que é “comum”, “normal” ou “sadio” do que é “raro”, “errado” ou “doente”. Por isso tudo é que mais grave ainda é fazer um “diagnóstico” sem ter as ferramentas e expertise corretas para isso, já que, como fica claro pelos sintomas, muitas das crianças com esses e outros transtornos de aprendizagem podem ser facilmente confundidas com outras ditas “sem problema” e que “só” apresentam comportamentos de agitação ou dificuldades de concentração.


Sem contar que, dentro da própria área médica, há até hoje a discussão em torno da real existência biológica desses transtornos, que são compostos de muitas partes e sentidos, todos nem simples nem evidentes. O que é real, o que não é real? O que é patológico, o que é normal? E que sintomas se incluem em um ou em outro desses reinos?


A melhor resposta está no cuidado


Para todas essas e quaisquer outras perguntas que girem em torno de se alguma criança tem ou não um transtorno de aprendizagem, a melhor resposta é “tenha cautela”. Se apressar a fazer o tal diagnóstico com o objetivo de “curar o problema o quanto antes” pode ser um tiro que sai pela culatra. Isso porque, para um indivíduo em idade de formação, biológica, mental e principalmente emocional, ser categorizado como portador de um problema de aprendizagem pode ser determinante para que, ainda que fosse apenas uma fase, uma dificuldade pontual ou um mal momento influenciado por uma situação externa (como vimos no artigo Seu filho tem mesmo um problema de aprendizagem?), ele crie uma crença sobre si mesmo de que “não consegue aprender” ou “não tem concentração” – e isso pode influenciar toda a sua vida.


Por isso, assim como na visão da psicanálise e da psicopedagogia é necessário questionar o uso de termos como transtorno e deficiência. Para se trabalhar a dificuldade em aprender o primeiro passo é sempre focar no retorno do desejo do saber. O fracasso escolar é capaz de aniquilar a imagem que cada um tem de si, gerando inclusive uma depressão no futuro. Na contramão, ser acolhido e entender que ter dificuldades em um processo tão complexo e longo quanto o aprender é uma coisa comum ao ser humano pode dar às crianças mais esperança de mudança e até ser a chave para reverter a situação e vencer o “problema”.


Ser responsável é nossa responsabilidade


Em resumo, ao ter contato com crianças que apresentam algum tipo de dificuldade no aprender, seja seu papel o de família ou o de educador, tenha em mente a importância de não fazer nenhum diagnóstico de dislexia, TDAH ou outros transtornos. Não as rotule e prefira abordar a questão acolhendo-as em seus erros, dificuldades e sendo um agente de incentivo à melhora em lugar de um buscador da cura para uma suposta doença. Afinal, as dificuldades de aprendizagem são abrangentes e globais, e não relacionam-se somente ao aluno, mas também ao professor, à metodologia e conteúdo, à escola, à família, sua história de vida e ao ambiente social em que ele está inserido.


Para terminar, vale enfatizar que, sim, existem pessoas com doenças reais, que levam a deficiências que podem comprometer seu desenvolvimento cognitivo. Mas não é delas que este texto fala. Ao contrário, ele fala de pessoas “normais”, saudáveis, crianças que apenas apresentam comportamentos e modos de aprender distintos do padrão uniforme e homogêneo que se convencionou como normal. No meu trabalho como psicopedagoga, procuro buscar, ao lado de alunos e seus responsáveis, esses caminhos alternativos que possam preencher as lacunas de aprendizagem para a formação de indivíduos que não apenas sejam aptos, mas tenham prazer por aprender. Se quiser saber mais sobre esses atendimentos, clique aqui.


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